18/02/2004
Ao mesmo tempo em que os grandes bancos batem recordes de lucro, a carteira de crédito controlada pelo sistema financeiro ficou menor – e aumentaram os empréstimos ao governo.
(São Paulo) A temporada de divulgação dos balanços de 2003 dos maiores bancos brasileiros chega ao fim com um dado polêmico: ao mesmo tempo em que apuraram lucros bilionários, nunca vistos na história do país, a carteira de crédito controlada pelo sistema financeiro ficou menor. Na prática, isso significa que empresas e pessoas físicas tomaram menos empréstimos dessas instituições, apesar da redução das taxas de juros verificada ao longo do ano. A ampliação do volume de crédito disponível em 2003 era um dos objetivos do governo Lula para reativar o crescimento econômico.
Os números da Itaú Holding, que divulgou seu balanço nesta terça-feira (17), ilustram bem essa história. O conglomerado registrou lucro líquido de R$ 3,152 bilhões em 2003. No mesmo período, sua carteira de crédito encolheu, em termos nominais, para R$ 44,6 bilhões – uma queda de 1,76% em relação ao ano anterior, quando atingia R$ 45,4 bilhões. Essa redução, no entanto, é bem maior, de 10,12%, se considerada a inflação medida pelo IPCA em 2003, que foi de 9,3%.
Bradesco e Unibanco, os outros dois grandes privados brasileiros, trazem tendências semelhantes em seus balanços. Com lucro líquido de R$ 2,306 bilhões em 2003, o Bradesco chegou em dezembro com uma carteira de crédito de R$ 54,336 bilhões, resultado 6,9% maior do que os R$ 50,800 bilhões de 12 meses anteriores. No entanto, se aplicado o IPCA de 9,3%, a carteira de crédito do banco também apresentou redução, de 2,14%.
A mesma lógica serve para o Unibanco. Em sua divulgação, o banco, cujo lucro líquido em 2003 chegou a R$ 1,052 bilhão, anunciou aumento de 4,36% em sua carteira de crédito, de R$ 26,751 bilhões para R$ 27,917 bilhões. No entanto, mais uma vez, esses dados são nominais. Se aplicado o IPCA, pode-se dizer que a carteira do Unibanco encolheu no ano passado 4,52%.
A retração da carteira de operações de crédito do sistema financeiro já havia sido detectada por pesquisa do Banco Central divulgada no final de janeiro. Segundo o BC, o saldo dessa carteira encerrou 2003 em R$ 411,384 bilhões, um crescimento líquido de 8,74% sobre 2002. No entanto, caso se leve em conta o IPCA de 9,3% registrado no ano passado, essa variação significa uma queda real de 0,51%.
Para o economista Paulo Gomes, da consultoria Global Invest, a estagnação do crédito em 2003 é explicada por dois de fatores negativos que atuaram em conjunto: na ponta dos bancos, os juros altos (“é verdade que as taxas diminuíram ano passado, mas isso demorou meses para acontecer”); e a queda da renda, na ponta dos consumidores (“as pessoas estavam com a renda muito deprimida para tomarem novos empréstimos”). Assim, diante das incertezas da economia, a tendência de qualquer instituição financeira é evitar exposição exagerada, ou seja, aumentar seus spreads e afastar o tomador.
Essa lógica pôde ser constatada em pesquisa da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac), divulgada no último dia 11, revelando aumento da taxa de juros cobrada de empresas e consumidores em janeiro. Conforme a entidade, essa foi a reação dos bancos e financeiras após o BC ter suspendido o longo processo de redução dos juros básicos da economia, a Selic, por causa do receio de alta da inflação. A taxa média aplicada às pessoas físicas chegou a 149,59% em janeiro, ante os 144,91% de dezembro. No mesmo período, os juros cobrados das empresas passaram de 67,65% para 71,55%.
Segundo a economista Maryse Farhy, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a reduzida oferta de crédito é um dos gargalos para o sonhado crescimento sustentável do país. Aqui, a relação do crédito em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) fechou 2003 em 25,5%, ante níveis acima de 100% nos países desenvolvidos e em boa parte daqueles em desenvolvimento, como Malásia e Coréia do Sul. Em 1994, início do Plano Real, essa relação passava de 36%.
Em estudo recém-publicado no Boletim de Política Econômica da Unicamp, Maryse volta à crise da dívida nos anos 80 para explicar os motivos que levaram o “setor financeiro a ter supremacia sobre o setor produtivo no país”. Segundo ela, desde então, governo – como gestor da política econômica – e bancos mantêm uma relação privilegiada, pela qual o primeiro usa o segundo para rolar suas dívidas, “pagando” os juros elevados que garantem a alta lucratividade. Essa lógica pode ser constada nas chamadas operações de tesouraria – movimentação com títulos da dívida pública, com juros elevados e menor risco –, responsáveis por boa parte dos lucros bancários.
Veja o caso do Bradesco. A carteira de investimentos em títulos do governo passou de R$ 37 bilhões para R$ 53 bilhões, uma elevação de 43%. Ao mesmo tempo, o volume de crédito concedido ao setor privado subiu 6,9%, de R$ 50,800 bilhões para R$ 54,336 bilhões. Na prática, isso significa que o banco destinou para o governo uma parcela maior de seus recursos de crédito. “O prejudicado nessa história é o investimento produtivo”, diz Maryse, que defende que o BC retome sua política de redução da Selic. Nesta quarta-feira (18), termina a reunião do Copom (Conselho de Política Monetária do BC) para decidir se altera a taxa, hoje em 16,5%.
Independentemente desse dado, Roberto Luis Troster, economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira dos Bancos), vê com mais otimismo as perspectivas de expansão do crédito em 2004. Segundo ele, os dados dos últimos meses do ano passado indicam aquecimento do mercado de crédito: a tendência de redução dos juros ao longo de 2003 trouxe o consumidor de volta às compras. A pesquisa mensal da Febraban com 53 instituições financeiras prevê crescimento de 15% no volume de crédito neste ano, para uma Selic em dezembro de 13,71%.
Fonte: Marcel Gomes – Agência Carta Maior