Os debates sobre o golpe parlamentar contra a soberania popular e, consequentemente, contra o mandato da Presidente Dilma Rousseff, dominam o cenário nacional. E assim há de ser ante a iminente ameaça de ruptura institucional.
Denunciar o golpe, seus atores e interesses envolvidos, tem se evidenciado como importante linha de atuação de quem possui compromisso com o Estado de Direito e com a democracia. Associando-me a esta forma de resistir, pretendo expor algumas considerações sobre os efeitos causados por um possível governo Temer aos direitos dos trabalhadores.
Antes mesmo de Eduardo Cunha autorizar o prosseguimento do pedido de impedimento da presidente da República, o PMDB divulgou documento contendo as principais propostas de Michel Temer para enfrentar a crise política e econômica, destinando-se, entre outras coisas, segundo suas palavras, “a preservar a economia e tornar viável o seu desenvolvimento”. Neste programa (“Uma ponte para o futuro” foi o título escolhido), o vice-presidente propõe, além da reforma da previdência social, da diminuição de investimentos em educação, saúde e programas sociais do Governo Federal, a retirada de direitos dos trabalhadores.
Não há de ser outra a leitura da proposta elaborada por Temer no sentido de “na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”. Simples, direto e, por que não dizer, cruel.
A expressão utilizada não poderia ser mais apropriada, pois, confere exatamente à medida daquilo que receberá a proteção do Estado, o “básico”. Por esse termo, compreendo salário, férias, décimo terceiro salário e, quem sabe, o FGTS. Extraio minha interpretação das inúmeras reivindicações por reformas trabalhistas apresentadas pelo patronato no curso da história quando defenderam a supressão de direitos. Mas, ela também resulta de o fato de Michel Temer não se preocupar em salvaguardar os direitos sociais previstos no art. 7º da Constituição Federal. Se assim o fosse, sua proposta ressalvaria as garantias constitucionais aos trabalhadores.
A pretensão de conferir autonomia privada absoluta à negociação coletiva, ou seja, conceder capacidade jurídica aos sindicatos para, por convenções ou acordos coletivos de trabalho, reduzir ou extinguir direitos previstos em lei, constitui-se em verdadeira obsessão do empresariado brasileiro.
Nos anos 1990, tramitou na Câmara dos Deputados um projeto de lei propondo modificar a redação do artigo 618 da CLT para nele constar a prevalência da norma coletiva sobre os direitos estabelecidos em lei, permitindo assim que os sindicatos abdicassem de conquistas previstas na legislação. Tal projeto somente foi definitivamente arquivado depois da primeira eleição de Lula, em 2002. Sopravam novos ventos.
A matéria retornou ao legislativo, no entanto, com o PL 4193/2012, de iniciativa do deputado Irajá Abreu (PSD/TO), tendo por proposta alterar o texto do artigo 611 da CLT possibilitando a sobreposição de convenções e acordos coletivos sobre os direitos garantidos em lei, mesmo em prejuízo dos trabalhadores.
O tema, portanto, é central (e recorrente) à pauta das principais entidades representativas do patronato no país. Sua inclusão no programa de Michel Temer notabiliza a tentativa, diga-se exitosa, de incitar a adesão da classe economicamente dominante ao golpe, então em gestação.
Os detentores dos meios de produção sempre perseguiram o ideário neoliberal de desregulamentação de direitos, com relações de trabalho pautadas na livre negociação entre as partes, estando, quando muito, os trabalhadores representados por seus sindicatos. Neste cenário a intervenção estatal é indesejada, pois, ao obrigar o cumprimento de determinados direitos à classe trabalhadora, o Estado impõe freios à exploração da mão de obra, constrangendo a cumulação capitalista.
Nossa elite econômica, sob o eufemismo da modernização da legislação trabalhista, pretende uma mudança de paradigma no direito do trabalho brasileiro. Esse ramo do direito desenvolveu-se como reação aos movimentos de resistência da classe trabalhadora. Resulta de processos históricos de correlação de forças entre capital e trabalho que precipitaram o intervencionismo do Estado com objetivo de pacificar as relações de produção.
A legislação trabalhista estabeleceu-se como patamar mínimo a partir do qual os sindicatos poderiam negociar outros direitos ou a majoração dos existentes. Disto decorre o caráter supletivo ou complementar das convenções e acordos coletivos, porque devem respeitar os pisos fixados pela lei.
A modificação proposta por Michel Temer subverterá a lógica sob a qual foi engendrado o direito do trabalho no Brasil. Mais do que isso. Se essa mudança for concretizada haverá de se falar em um novo direito, de cunho liberal, pautado no princípio da livre negociação e na liberdade de trabalho, o que para as elites brasileiras, historicamente, significam ausência de freios à exploração dos trabalhadores.
Em um contexto de retração econômica, aliada a decadente estrutura sindical brasileira, sempre a espera de uma reforma conferindo genuinamente liberdade e autonomia aos sindicatos, e com um direito de greve frequentemente tolhido pelo Judiciário quando exercido, permitir a redução e extinção de direitos previstos em lei pela via da negociação coletiva será uma tragédia.
No campo das relações concretas de trabalho essa proposta representará, à exceção a uma ou outra categoria de trabalhadores mais organizada e com maior capacidade de mobilização, a suspensão de praticamente todos os direitos previstos na CLT. Em perspectiva acadêmica significará o fim do direito do trabalho brasileiro tal qual conhecemos e estudamos.
A proposta de modificação apresentada por Michel Temer torna-se ainda mais perversa se combinada com as iniciativas legislativas de flexibilização ou extinção de direitos, patrocinadas pelo patronato brasileiro. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional cinquenta e cinco projetos que, uma vez aprovados, significarão supressão de direitos dos trabalhadores. Destes, certamente o de maior potencial lesivo é o PLC 30/2015, aprovado na Câmara e submetido ao Senado, que permitirá terceirizar todas as atividades de uma empresa, induzindo a fragmentação ainda maior da representação dos trabalhadores e, consequentemente, a precarização das condições de trabalho. Na outra direção, potencializará lucros aos capitalistas.
Com o golpe de 1964, a ditadura militar-civil instaurada interveio diretamente nas negociações coletivas de trabalho, enfraquecendo a representação sindical dos trabalhadores, resultando, por infindáveis vinte e um anos, de um lado, arrocho salarial e, de outro, aos capitalistas, maior concentração de renda. Naquela época, os militares tomaram o poder político para garantir a grande burguesia sua supremacia nas relações de produção, sem sobressaltos, inconvenientes ou constrangimentos a maior cumulação de capital.
Hoje, cinquenta e dois anos depois, os militares estão na caserna. Mas, novamente, a elite econômica do país, por intermédio de seus representantes na classe política, objetiva ampliar seu domínio nas relações de produção, através da desregulamentação do direito do trabalho, com suspensão da eficácia das leis trabalhistas, especialmente da CLT. Com isso, serão afastados os limites à exploração da classe trabalhadora, propiciando maior concentração de riqueza e aumento da desigualdade social e econômica.
Não é difícil, portanto, compreender as razões do engajamento político e financeiro das entidades da classe patronal ao golpe. Por detrás do tecnicismo jurídico, das mentiras propagas pela imprensa, das justificativas econômicas ou do moralismo hipócrita com que a questão do impeachment é abordada, no cerne de tudo isso está a luta de classes. Esta não é a primeira e nem será a última tentativa de a classe economicamente dominante retirar do poder político, por via ilegítima, quem constrange a concretização plena de seus interesses.
É luta de classes! Cabe aos trabalhadores resistirem as investidas do capital contra o Estado de Direito e contra a democracia. Agindo assim também estarão defendendo seus interesses de classe.