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O Julho das Pretas e o país que queremos

Tempos atrás, ouvi de uma pessoa por quem tenho muita estima, uma consideração crítica sobre a segmentação de lutas. A questão é que, ao nos alinharmos em diferentes grupos identitários, estaríamos segmentando a luta por justiça social e melhores condições de vida, a ponto de enfraquecer os movimentos organizados. Essa perspectiva vem de uma preocupação real, mas me pergunto para onde vai.

Criado em 25 de julho de 1992, durante o Primeiro Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenhas, em Santo Domingo, na República Dominicana, o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha tem sido marcado por diversas ações afirmativas e de luta antirracista com ênfase na realidade vivida pelas mulheres negras. Durante todo o mês, temos atividades dentro do Julho das Pretas, buscando chamar a atenção para questões que dizem respeito à vida… de mulheres negras. Ano após ano, participando desses eventos, ouço relatos sobre violências contra o corpo, contra a dignidade, relatos de negação de direitos humanos básicos, de discriminação e preconceito, que acontecem… com mulheres negras.

É fato que mulheres não negras também trazem na pele histórias de violência. É fato que homens negros também as colecionam, assim como pessoas periféricas, LGBTQIA+ ou PcD de diversas etnias também as podem contar. Mas também é fato que vivemos em um país racializado e segmentado a tal ponto que já temos como aceita pela intelectualidade uma espécie de “ranqueamento de privilégios”. Uma ordem clara de quais os grupos que detêm mais privilégios até aqueles que sofrem mais preconceito e violência social, a partir dos marcadores de gênero e de raça. E mulheres negras se encontram na parte inferior dessa pirâmide, pois sofrem tanto por ações misóginas e sexistas, quanto com o racismo estrutural, os preconceitos e as diversas formas de discriminação da pessoa negra que se constituem diariamente no país.

Não cabe neste artigo um debate alongado sobre os conceitos de racismo estrutural, racialização, discriminação e preconceito racial, esclarecendo as diferenças entre cada um deles. Para isso, a amiga ou amigo interessado pode consultar nomes como Lélia González (que, aliás, é referenciada internacionalmente, inclusive por Angela Davis) ou Lia Vainer Schucman. Também não me darei ao trabalho de debater o já cansativo e ultrapassado questionamento sobre “se” existe racismo no Brasil. Aliás, estamos já bastante cansadas de sermos “tratadas como uma enciclopédia”, como disse um professor anos atrás, por pessoas que querem se afirmar como antirracistas, mas não querem se dar ao trabalho de buscar as informações no local adequado: a literatura antirracista que, inclusive, é vasta.

Basta trazer a imagem do racismo estrutural já tão extensamente “desenhada”: o conjunto de ações e estruturas, resultado da forma como as relações raciais se fizeram no país, a partir de escravização e posterior marginalização da população negra, que resultam nas condições atuais vividas pela maioria das pessoas negras. Para exemplificar de forma bastante sucinta e simplificada, podemos lembrar que enquanto colonos europeus chegaram ao país com direito a posse de terras e designados para empregos na indústria, os negros trabalharam de forma escrava durante mais de trezentos anos. “Libertados”, sem direito a qualquer indenização pelo tempo de trabalho ou direito à propriedade, a herança de todo e qualquer escravizado para seus descendentes (que constituem a população negra atualmente) foi a resistência e a luta por dignidade e pela própria vida. Isso é a história da estrutura de classes baseada na raça.

É a partir dessa estrutura que se constitui o lugar que ocupam as mulheres negras. Se pelo marcador de raça sua realidade está submetida a essa estrutura, pelo marcador de gênero, estão submetidas, também, aos processos de violência e prejuízo que resultam do machismo estrutural. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) dá conta de que os grupos que mais sofrem com desemprego (ou emprego informal) são os negros e, entre eles, as mulheres. Assim como a faixa de renda também é menor para as mulheres, enquanto casos de família monoparental também são mais comuns com mulheres negras.

Ou seja, a segmentação não é causada pelas pautas identitárias ou pelas pessoas que defendem a luta atravessada por recortes de grupos identitários. Não é prerrogativa de mulheres negras a escolha sobre se terão mais problemas do que homens negros ou do que mulheres brancas. Certamente, se a escolha fosse nossa, não estaríamos em posição de prejuízo. A segmentação já está posta, ela é um fato social.

Portanto, não temos escolha senão exigir que os movimentos sociais que realmente queiram ser entendidos como sérios e comprometidos com a construção de uma sociedade melhor, não apenas aceitem a pauta, mas façam dela mais uma de suas bandeiras. E isso quer dizer inserir a luta feminista e antirracista em debates e ações reais durante todo o ano, todos os dias, em todos os momentos de organização e decisão. Falar sobre a luta das mulheres negras não é um favor, não é concessão, deve ser um compromisso constante. Uma sociedade mais justa não se faz a não ser que todas as injustiças e desigualdades sejam resolvidas, igualitariamente. Não é possível bradar palavras de ordem sobre igualdade de oportunidades ao mesmo tempo que se vira as costas justamente aos elos mais frágeis, pois essa luta em si, estaria contrariando o que ela mesma defende: direitos iguais.

É simbólico que nesse mês de efervescência em torno das questões de raça e gênero tenhamos tido avanços na solução do caso Marielle. A figura dela não pode se resumir ao lindo painel na parede do estacionamento. Se aqueles que desejam tanto a destruição dos ideais de um país justo e uma sociedade humana sentiram necessidade de calar alguém que sempre trouxe a voz da mulher negra e lésbica, defendendo a pauta desses grupos identitários e mostrando o quanto é essencial que todos cheguem ao topo juntos (não apenas mulheres brancas, não apenas homens negros), é porque, de fato, apenas chegando lá em pé de igualdade, poderemos dizer que vencemos a exploração predatória da elite, dos donos do capital.

Regina Miranda nasceu em São Miguel do Iguaçu-PR, é formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná e especializada em Educação a Distância. Além de escritora, é mãe, delegada sindical pelo Banco do Brasil e professora particular de produção de texto. Com uma escrita bastante voltada à questão de gênero, publicou o ensaio Em Busca de Sycorax (2021), e o romance Soror – Encontrando sentidos (2022), pela Caravana Grupo Editorial, participa da Antologia de Contos de ficção científica e fantasia, do Selo Offlip, com o conto Revolução, substantivo feminino (2022), além de publicações digitais e participação com poemas nos zines As milagoras e Zine Meretriz. Gosta de cinema, de vinho e café e, é claro, de uma boa leitura.

Autor: Regina Miranda  |  Fonte: Sindicato dos Bancários e Financiários de Curitiba e região

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