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O país, o povo e os bancos

O IBGE acaba de divulgar os primeiros resultados da sua importante Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Os dados ainda deverão ser mais bem analisados, mas certamente surgirá uma quantidade enorme de artigos sustentando a tese da redução das desigualdades sociais e econômicas ocorrida no País em período recente, tal como analisei aqui no texto “Mito e realidade acerca da redução das desigualdades”.

O fato é que a metodologia da POF, a exemplo da PNAD, não nos permite uma avaliação adequada da distribuição de renda entre as classes sociais – ela opera com o conceito de níveis de rendimento. A partir de pesquisas junto às famílias, a enquete tem amplitude nacional e pode ser fundamental para o diagnóstico de um conjunto importante de políticas públicas. É o caso da habitação, da educação, da saúde, transportes, serviços públicos e padrões de consumo de forma ampla.

E ali, com certeza, estará identificada a melhoria das condições de vida da população mais pobre e a redução das disparidades, sempre considerada no interior de um conjunto que engloba as famílias de classe média, os assalariados e os por conta própria de baixa renda. Porém, o problema é que as informações relativas às famílias do topo da pirâmide social, a elite do famoso 1% mais rico não têm participação significativa e não autoriza conclusões mais contundentes a respeito do comportamento da concentração de renda entre os que muito têm e os que pouco recebem.

Uma das formas de avaliarmos qual o resultado efetivo da política de redução das desigualdades entre o capital e o trabalho, é a observação comparada de como evoluíram os indicadores do setor mais expressivo e mais estratégico das classes dominantes no capitalismo contemporâneo: o mundo das finanças. E no interior desse universo, tomaremos o caso das organizações mais antigas e mais simbólicas do mesmo – os bancos.

Como é amplamente reconhecido, a estruturação dos setores mais estratégicos e mais dinâmicos do capitalismo é caracterizada por elevado grau de concentração de poder de mercado. A velha fórmula de “poucos, grandes e fortes”, que se verifica em áreas como a indústria automobilística, de eletro-eletrônicos, de equipamentos militares, aeronáutica, telecomunicações, farmacêutica, etc, se repete também no perfil das instituições financeiras pelo mundo afora.

No caso brasileiro, o grau de concentração é, também, uma característica marcante do setor bancário. A particularidade está na presença, historicamente importante, do setor público na constituição do mesmo. Até a década de 90, o núcleo duro das instituições de crédito era constituído por bancos oficiais federais e por bancos pertencentes aos governos dos estados da federação. Com a privatização da maior parte desses últimos levada a cabo a partir daquele período e com a abertura à entrada de grandes conglomerados estrangeiros, a presença do Estado no setor se resumiu ao Banco do Brasil (BB) e à Caixa Econômica Federal (CEF), além do BNDES – organismo que não atua como banco de varejo, mas apenas como banco de negócios e de empréstimos com características específicas.

A magnitude do setor pode ser melhor avaliada a partir de seus próprios números. Não se assuste, pois as dimensões são realmente colossais. No final de 2009, o total dos ativos do sistema financeiro em nosso País chegava a R$ 3,6 trilhões. Exatamente isso; pouco mais de 115% do PIB, que alcançava R$ 3,1 trilhões. Os mais familiarizados com o tema farão o alerta: peraí, Paulo, mas no ativo dos bancos estão também contabilizados os valores das contas de depósitos. E esses valores não pertencem à instituição financeira, mas sim aos correntistas. De acordo, a idéia não era tirar nenhuma conclusão apressada dos números acima, mas tão somente oferecer aos leitores um panorama da importância do sistema e de sua dimensão na economia.

Caso tomemos os dados relativos ao conceito que se denomina “patrimônio líquido” dos bancos, ficaremos apenas com aquilo que é de propriedade efetiva da empresa financeira, sem a contagem dos valores dos depósitos dos correntistas. Nesse caso, os valores para o final de 2009 correspondem a quase 10% do ativo total: somam R$ 345 bilhões. E finalmente chegamos aos valores da conta “lucro líquido” do conjunto dos bancos para o exercício passado: R$ 31 bilhões. Esta é apenas uma das inúmeras fotografias possíveis para se visualizar o sistema, tirada há 6 meses atrás.

Além disso, é importante mencionar que, apesar do movimento de liberalização do setor e do crescimento da banca privada e multinacional, a presença do BB e da CEF continuou a ser expressiva no setor. Juntas, essas duas empresas do governo federal representam por volta de 30% dos ativos do sistema bancário, com uma participação de 25% nos lucros totais apropriados pelos bancos em 2009. Porém, a estratégia do governo não se utilizou de tal fato para tentar imprimir uma outra direção aos agentes do setor. Na verdade, pelo contrário, estimulou-se um doloroso processo de concorrência, com a adoção das regras típicas dos bancos privados.

Apesar de existirem quase 3 centenas de instituições bancárias no País, o fenômeno da concentração e da oligopolização é flagrante. Ainda com os dados relativos ao final do ano passado, os 5 maiores conglomerados (BB, Itaú, Bradesco, CEF e Santander – nesta ordem) concentravam 67% do ativo, ou seja, 2 em cada R$ 3 do total do sistema. E ainda 60% do patrimônio líquido e 59% do lucro líquido do conjunto dos bancos. Caso ampliemos um pouco a amostra e consideremos as 10 maiores instituições bancárias, os percentuais sobem para 76% dos ativos, 68% do patrimônio líquido e 65% do lucro líquido de todo o sistema.

Com isso, fica evidente que o padrão de competição de mercado no setor bancário não tem nada a ver com o “mercado da batatinha” – se a vegetal está muito caro numa barraca na feira, a dona de casa talvez consiga uma melhor relação qualidade/preço caso se disponha a percorrer alguns metros a mais pela rua. No caso das instituições financeiras, o poder dos agentes pelo lado da oferta é enorme e justamente por isso caberia, em tese, ao órgão regulador – no caso, o Banco Central – o papel de redução do abuso dos bancos. É o que se chama de “padrão assimétrico entre agentes de oferta e demanda”, situação em que os consumidores ficam impotentes e em absoluta desvantagem frente às instituições bancárias, tal como ocorre em casos como as telecomunicações, a eletricidade, os transportes, etc.

Por outro lado, a configuração bastante particular do quadro econômico e institucional de nosso País faz com que a vida de dirigente de banco não seja lá tão complexa ou arriscada. A permanência quase estrutural da elevada taxa de juros, definida pela autoridade monetária, assegura à gestão dos recursos disponíveis na tesouraria das instituições do sistema uma remuneração mínima já considerada “máxima” para os padrões internacionais. Por exemplo, com a taxa SELIC no patamar atual de 10,25% a.a. e a inflação em torno de 4,5% a.a., a rentabilidade mais baixa já se aproxima dos 6% anuais. Ou seja, se o banco não fizer nada mais, além do que comprar e vender títulos da dívida federal, ele consegue tal rentabilidade.

Além disso, a prática abusiva dos bancos – contando com a conivência e o silêncio do Banco Central – face a seus clientes e à sociedade de forma geral lhe permite obter outros ganhos seguros, a exemplo dos escandolosos níveis de “spread” praticados (espero conseguir tratar desse tema em artigo específico) nas operações e nos valores elevados das tarifas bancárias cobradas de forma indiscriminada.

Assim, o que se verifica é uma participação mais apetitosa, para dizer o mínimo, dos bancos na repartição do bolo obtido com o crescimento econômico recente. O País tem crescido nos últimos anos a taxas razoáveis e as condições da maioria da população têm, igualmente, experimentado melhoria. Mas nada que se compare com a evolução observada com os indicadores do setor bancário.

Entre 2003 e 2009 o salário mínimo saiu de R$ 240 e alcançou R$ 465, ou seja, uma elevação nominal de 94%. A remuneração média dos trabalhadores de São Paulo era de R$ 901 e saltou para R$ 1.302, ou seja, uma elevação nominal de 45%. O PIB brasileiro era de R$ 1,7 tri e elevou-se para R$ 3 tri, ou seja, um crescimento nominal de 77%. Caso utilizemos o conceito do PIB per capita, os dados nos apresentam o valor de R$ 9.500 no início do período e de R$ 16.400 no ano passado. Ou seja, um crescimento nominal de 73%.

Já as informações observadas no que se refere à performance do setor bancário superam em muito tais índices de crescimento. Os ativos totais saíram de R$ 1,3 tri e superaram os R$ 3,6 trilhões, significando um crescimento nominal de 177%. Os dados relativos ao patrimônio líquido somavam R$ 129 bi em 2003 e atingiram R$ 345 bi no ano passado, proporcionando uma elevação nominal de 167%. Finalmente, a rubrica do lucro líquido saiu de R$ 12,5 bi e atingiu R$ 31 bi, fazendo com que os bancos obtivessem um crescimento nominal de 148% nessas contas.

Uma das conclusões a que se pode chegar a partir da leitura de tal quadro é que o processo de crescimento econômico não é neutro por si só. Os diferentes setores buscam se defender e se apropriar dos excedentes gerados pela atividade econômica na sociedade. Se, por um lado, é inegável que houve avanços importantes pelo lado da melhoria das condições de vida da maioria do povo, por outro lado, é também inequívoco que as elites têm logrado se apropriar ainda mais – em um padrão superior à média – dos benefícios proporcionados pelo crescimento. Infelizmente, a experiência internacional mostra que, em boa parte dos casos, o crescimento econômico se faz acompanhar de um aumento das desigualdades.

Assim, deveria caber ao Estado um comportamento mais atuante no sentido de regular a atividade econômica e propiciar uma distribuição mais equânime dos chamados “frutos do crescimento” entre os diferentes setores, principalmente em favor dos que apresentam menor capacidade de pressão frente aos verdadeiros detentores do poder.

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